O Pastor que Contava
Ovelhas
Luís Henrique Alves Pinto
Varginha - MG - 2013
As crianças assumem, por vezes,
rituais, como o da hora do sono. Com minha filha de três anos não é
diferente. Durante um tempo, toda noite, era necessário estar ao lado da sua
cama e contar histórias, rezar e cantar. Que história contar, pensava eu,
tentando arrancar do baú da memória uma com oportuna mensagem. Lembrei-me das
parábolas dos Evangelhos e de uma em especial, com animal, a do pastor que
tinha cem ovelhas.
Iniciei
cheio de entusiasmo, crente de que ovelhinhas cativariam sua atenção. Mas logo
na primeira frase fui prontamente questionado. __ Cem ovelhas? O que é cem?
Sim, explicar a quantidade exata de animais que o pastor possuía já não era
tarefa fácil, imagine só desvendar a segunda pergunta: __ com tantas ovelhas
assim como ele ficou sabendo que havia perdido uma? Inicialmente parece uma
interrogação simples, contudo, ela revela algo importante do coração da própria
parábola - a dimensão do cuidado do pastor. Como pode ter notado a ausência de
uma entre tantas? A solução encontrada foi apresentar um cuidadoso pastor que
toda noite contava uma a uma suas ovelhas.
Muitas vezes ouvi, li e refleti
sobre este texto e nunca pensei de modo tão concreto, nem vi esta dificuldade
prática de reconhecer a ausência de apenas uma entre tantas tão semelhantes. A
parábola do bom pastor, especialmente em Lucas, é a resposta ao questionamento
do porque Jesus senta-se a mesa com os pecadores e também do porque as
primeiras comunidades se abrem a participação dos não judeus. A parábola começa
justamente com um questionamento direto de Jesus aos seus acusadores.
Se um de vocês tem cem ovelhas e
perde uma, será que não deixa as noventa e nove no campo para ir atrás da
ovelha que se perdeu, até encontrá-la? Lc 15,4
O que a torna especial? Saint
Exupery já consagrou na saga do Pequeno Príncipe que o cativar e deixar-se
cativar fez da rosa o tesouro do menino.
Na parábola e no questionamento dela há algo mais. Algo que faz lembrar um
filosofo chamado Emmanuel Lèvinas e sua filosofia da alteridade. Notar a
ausência é o profundo reconhecimento do outro. É vivenciar a alteridade. Não
são simples existências jogadas no deserto, são existentes. Diferente de mim,
diferente dos outros, é o outro. Não se trata somente da responsabilidade pelo
outro, mas da capacidade de colocar-se
no lugar do outro e, sobretudo, reconhecer sua diferença.
Superadas as primeiras questões e voltando
à narrativa apresentei um pastor cheio zelo saindo a procura da ovelha, andando
por desertos, vales e montanhas... __ florestas também, complementa ela. A luz
suave do abajur permite ver os olhinhos dela ainda atentos, o sono parece
distante. Quando chego ao ponto alto da história e digo que pastor encontrou a
ovelha, a colocou nos ombros e a levou de volta para casa. Ela novamente
interrompe questionando: __ Por que ele colocou a ovelhinha nos ombros? Por que
ela não foi andando? Respondo: ela estava cansada e fraca, por isso não podia
andar sozinha. __ Ah! eu também fico cansada e peço colo. Não é mesmo? Impressiona-me
a capacidade dela de atualizar e transferir para sua realidade pessoal o fato
narrado. Se no início o questionamento revelou a singularidade do outro, neste
segundo momento a identificação. Nos dois, a alteridade.
No Evangelho a alegria do pastor contagia
amigos e vizinhos. A boa nova inclusiva de Jesus e das primeiras comunidades
cristãs resgata publicanos, pecadores e helenistas, fazendo deles participantes
privilegiados do banquete do Reino. É o coração do Evangelho de Lucas, a
misericórdia expressa na comensalidade.
"E quando a encontra, com muita
alegria a coloca nos ombros. Chegando em casa, reúne amigos e vizinhos, para
dizer: ‘Alegrem-se comigo! Eu encontrei a minha ovelha que estava perdida’. Lc
15, 5-6
A história terminou feliz. Amigos
reunido e festa na casa pastor, pois a ovelha fora encontrada. A lição ficou,
para ela e pra mim também. Após a oração da noite e alguns cantos, o sono dela
chegou e o meu se foi. Fiquei pensando nas suas perguntas e na urgência em
resgatar a alteridade em nossos tempos tão ásperos.
Temos a tendência de colonizar o
outro. Quando os colonizadores chegaram continente ameríndio sentiam-se e agiam
como superiores em relação aos povos originários. Empreenderam uma destruição
de toda a cultura do outro: demonizaram sua religião, ridicularizaram seus
costumes e saberes, saquearam suas cidades, escravizaram seus corpos, negaram
sua alteridade. Com raras e honrosas exceções, não sentiram compaixão ou
solidariedade, pois não se colocaram no lugar do outro.Quando desejamos
colonizar o outro por meio da imposição de nossas regras e pensamentos tornamo-nos
totalitários e rompemos com alteridade. A tendência de absolutizar o modo
pessoal de ser e a negar o que é diferente consiste numa forma de violência.
Aprendi da parábola e com os
questionamentos dela duas relevantes lições: a singularidade e a
solidariedade para com o outro. Singularidades, assim como nas cem ovelhas, uma
se perdeu e sua falta foi sentida por sua individualidade. Também no cotidiano
entramos em contato com várias pessoas. Todas distintas e singulares em
pensamentos, ações, histórias, vida... Quando estamos diante de uma pessoa
devemos assumir a atitude de ouvir e aprender, empreendendo uma troca de
saberes. Solidariedade é saber que outro sente as mesmas dores, fadigas e medos
ou alegrias e prazeres que sinto. Assim como a ela se identificou com a ovelha
cansada dos ombros do pastor, devemos no colocar no lugar do outro para saber
de suas motivações, sonhos ou das razões de sua amargura. A alteridade nos
permite ver o que nos distingue e o que nos torna idênticos. Assim, a parábola
do bom pastor, agora batizado de o pastor que contava ovelhas me ensinou mais
uma vez.
A reflexão sobre a alteridade deve
permear nossas relações: pais e filhos, casamentos, amizades e trabalho. Aquele
outro que nos rodeia a todo instante é alguém diferente de nós em tudo: em pensamento,
sensibilidade, na maneira de fazer coisas e de viver a vida. A alteridade nos
conduz inclusive a compreender a presença de Deus no outro. É a partir dessa
mudança do nosso olhar para esse que é tão diverso do “eu” que o "outro" se torna uma epifania do
divino. O outro é sua manifestação, é sua imagem. Para com ele devemos as mesmas reverências e respeito. Olhando para
o rosto do outro e enxergando o rosto de Deus, como em Mateus 25, somos
invitados a servi-lo, compreendê-lo em atitude amorosa. Esta forma de ver o
outro nos conduz à dimensão ética da responsabilidade, do envolvimento para com
outro individualidade e solidariedade.