sábado, 20 de dezembro de 2014


O Pastor que Contava Ovelhas

Luís Henrique Alves Pinto


Varginha - MG - 2013


            As crianças assumem, por vezes, rituais, como o da hora do sono. Com minha filha de três anos não é diferente. Durante um tempo, toda noite, era necessário estar ao lado da sua cama e contar histórias, rezar e cantar. Que história contar, pensava eu, tentando arrancar do baú da memória uma com oportuna mensagem. Lembrei-me das parábolas dos Evangelhos e de uma em especial, com animal, a do pastor que tinha cem ovelhas.

Iniciei cheio de entusiasmo, crente de que ovelhinhas cativariam sua atenção. Mas logo na primeira frase fui prontamente questionado. __ Cem ovelhas? O que é cem? Sim, explicar a quantidade exata de animais que o pastor possuía já não era tarefa fácil, imagine só desvendar a segunda pergunta: __ com tantas ovelhas assim como ele ficou sabendo que havia perdido uma? Inicialmente parece uma interrogação simples, contudo, ela revela algo importante do coração da própria parábola - a dimensão do cuidado do pastor. Como pode ter notado a ausência de uma entre tantas? A solução encontrada foi apresentar um cuidadoso pastor que toda noite contava uma a uma suas ovelhas.

            Muitas vezes ouvi, li e refleti sobre este texto e nunca pensei de modo tão concreto, nem vi esta dificuldade prática de reconhecer a ausência de apenas uma entre tantas tão semelhantes. A parábola do bom pastor, especialmente em Lucas, é a resposta ao questionamento do porque Jesus senta-se a mesa com os pecadores e também do porque as primeiras comunidades se abrem a participação dos não judeus. A parábola começa justamente com um questionamento direto de Jesus aos seus acusadores.

            Se um de vocês tem cem ovelhas e perde uma, será que não deixa as noventa e nove no campo para ir atrás da ovelha que se perdeu, até encontrá-la? Lc 15,4

            O que a torna especial? Saint Exupery já consagrou na saga do Pequeno Príncipe que o cativar e deixar-se cativar  fez da rosa o tesouro do menino. Na parábola e no questionamento dela há algo mais. Algo que faz lembrar um filosofo chamado Emmanuel Lèvinas e sua filosofia da alteridade. Notar a ausência é o profundo reconhecimento do outro. É vivenciar a alteridade. Não são simples existências jogadas no deserto, são existentes. Diferente de mim, diferente dos outros, é o outro. Não se trata somente da responsabilidade pelo outro,  mas da capacidade de colocar-se no lugar do outro e, sobretudo, reconhecer sua diferença.

            Superadas as primeiras questões e voltando à narrativa apresentei um pastor cheio zelo saindo a procura da ovelha, andando por desertos, vales e montanhas... __ florestas também, complementa ela. A luz suave do abajur permite ver os olhinhos dela ainda atentos, o sono parece distante. Quando chego ao ponto alto da história e digo que pastor encontrou a ovelha, a colocou nos ombros e a levou de volta para casa. Ela novamente interrompe questionando: __ Por que ele colocou a ovelhinha nos ombros? Por que ela não foi andando? Respondo: ela estava cansada e fraca, por isso não podia andar sozinha. __ Ah! eu também fico cansada e peço colo. Não é mesmo? Impressiona-me a capacidade dela de atualizar e transferir para sua realidade pessoal o fato narrado. Se no início o questionamento revelou a singularidade do outro, neste segundo momento a identificação. Nos dois, a alteridade.

            No Evangelho a alegria do pastor contagia amigos e vizinhos. A boa nova inclusiva de Jesus e das primeiras comunidades cristãs resgata publicanos, pecadores e helenistas, fazendo deles participantes privilegiados do banquete do Reino. É o coração do Evangelho de Lucas, a misericórdia expressa na comensalidade.

            "E quando a encontra, com muita alegria a coloca nos ombros. Chegando em casa, reúne amigos e vizinhos, para dizer: ‘Alegrem-se comigo! Eu encontrei a minha ovelha que estava perdida’. Lc 15, 5-6

            A história terminou feliz. Amigos reunido e festa na casa pastor, pois a ovelha fora encontrada. A lição ficou, para ela e pra mim também. Após a oração da noite e alguns cantos, o sono dela chegou e o meu se foi. Fiquei pensando nas suas perguntas e na urgência em resgatar a alteridade em nossos tempos tão ásperos.

            Temos a tendência de colonizar o outro. Quando os colonizadores chegaram continente ameríndio sentiam-se e agiam como superiores em relação aos povos originários. Empreenderam uma destruição de toda a cultura do outro: demonizaram sua religião, ridicularizaram seus costumes e saberes, saquearam suas cidades, escravizaram seus corpos, negaram sua alteridade. Com raras e honrosas exceções, não sentiram compaixão ou solidariedade, pois não se colocaram no lugar do outro.Quando desejamos colonizar o outro por meio da imposição de nossas regras e pensamentos tornamo-nos totalitários e rompemos com alteridade. A tendência de absolutizar o modo pessoal de ser e a negar o que é diferente consiste numa forma de violência.

            Aprendi da parábola e com os questionamentos dela duas relevantes lições: a singularidade e a solidariedade para com o outro. Singularidades, assim como nas cem ovelhas, uma se perdeu e sua falta foi sentida por sua individualidade. Também no cotidiano entramos em contato com várias pessoas. Todas distintas e singulares em pensamentos, ações, histórias, vida... Quando estamos diante de uma pessoa devemos assumir a atitude de ouvir e aprender, empreendendo uma troca de saberes. Solidariedade é saber que outro sente as mesmas dores, fadigas e medos ou alegrias e prazeres que sinto. Assim como a ela se identificou com a ovelha cansada dos ombros do pastor, devemos no colocar no lugar do outro para saber de suas motivações, sonhos ou das razões de sua amargura. A alteridade nos permite ver o que nos distingue e o que nos torna idênticos. Assim, a parábola do bom pastor, agora batizado de o pastor que contava ovelhas me ensinou mais uma vez.

            A reflexão sobre a alteridade deve permear nossas relações: pais e filhos, casamentos, amizades e trabalho. Aquele outro que nos rodeia a todo instante é alguém diferente de nós em tudo: em pensamento, sensibilidade, na maneira de fazer coisas e de viver a vida. A alteridade nos conduz inclusive a compreender a presença de Deus no outro. É a partir dessa mudança do nosso olhar para esse que é tão diverso do “eu” que o  "outro" se torna uma epifania do divino. O outro é sua manifestação, é sua imagem. Para com ele devemos  as mesmas reverências e respeito. Olhando para o rosto do outro e enxergando o rosto de Deus, como em Mateus 25, somos invitados a servi-lo, compreendê-lo em atitude amorosa. Esta forma de ver o outro nos conduz à dimensão ética da responsabilidade, do envolvimento para com outro individualidade e solidariedade.